Articles by Vik
(English) The Unbearable Likeness of Being
A Insustentável Semelhança Do Ser Vik Muniz
“Hokusai tentou pintar sem usar as mãos. Dizem que um dia, após desenrolar seu pergaminho diante do xogum, despejou sobre ele um pote de tinta azul e então, molhando os pés de um galo num pote de tinta vermelha, fez o pássaro correr sobre o pergaminho, deixando nele as suas marcas. Todos os presentes reconheceram nelas as águas do Rio Tatsuta carregando folhas de árvore avermelhadas pelo outono”. (Henri Focillon, The Life of Forms in Art)
Em geral, uma representação é reconhecida com base no fato de que a imagem retratada se parece com algo que já se viu, aprendeu ou experimentou. Esta mediação entre estímulos sensoriais recém-adquiridos e apreendidos anteriormente ocorre por meio da faculdade das “memórias semânticas”, um processo pelo qual dados são vorazmente extraídos do caos sensorial externo. Aqui, tudo é “abstrato” desde o início. Sempre que a memória semântica não consegue localizar o equivalente exato de um estímulo, ela força compulsivamente a equivalência, usando a aproximação. Assim, a interpretação de formas (abstratas à experiência pessoal) torna-se o resultado de um processo inteiramente pessoal.
E ainda assim a relação aparece,
uma relação pequena se expandindo como a sombra
De uma nuvem na areia, uma forma no flanco de uma colina
(Wallace Stevens, Connoisseur of Chaos)
O ato de olhar as nuvens, seja como um método de previsão ou como uma forma de passatempo, já existe há séculos: aquilo que para uma pessoa é uma carruagem, para outra pode ser um urso ou uma reunião de anjos. A visualização vem do interior do observador. Imagine por exemplo que certo dia, as nuvens no céu começam a formar a imagem perfeita de Dede Korkut montado num cavalo, com armas em punho. Se o espectador não conhece o épico poema turco de mesmo nome, esta imagem passa despercebida.
Apesar de sua ambiguidade, esta hermenêutica da proximidade está bem no cerne do desenvolvimento da língua escrita.
Em algumas línguas não ocidentais, nas quais os caracteres podem ter uma relação mais direta ou mesmo mais adversa com aquilo que representam, a interpretação de um texto escrito ocorre de maneira muito mais dinâmica que em línguas ocidentais. A ênfase na caligrafia em culturas asiáticas tem certos efeitos curiosos como, por exemplo, quando o escritor que desenha o caractere que significa “casa” possibilita que avenida europa o leitor distinga facilmente o tipo de casa com base na estrutura formal do caractere. Na escrita ideográfica, as cumplicidades entre forma e conteúdo são muito mais fortes. Não é preciso chegar ao conteúdo através da forma ou vice-versa: ao invés disso, há uma simultaneidade inexplicável.
As abstrações numéricas e alfabéticas das línguas ocidentais deram origem a uma dependência muito maior da convenção e da designação arbitrária de forma e conteúdo, paradoxalmente tornando as proximidades entre essas línguas ainda mais distantes.
No Ocidente, a percepção de antagonismo na relação entre forma e conteúdo gerou material suficiente para séculos de discussão ininterrupta. Platão, por exemplo, foi talvez a figura de maior destaque a isolar a forma do conteúdo (que para ele não tinha importância alguma). Esta “forma pura” (virtualmente invisível para Aristóteles) deveria ser percebida com o “olho da alma”. 1) O método de Platão era o de não se mover por indução, buscando mecanicamente elementos compartilhados por todas as espécies e depois combinando esses elementos num novo todo, e sim discernir a totalidade daquela forma genérica em cada ideia em particular, assim como distinguimos uma figura numa imagem confusa.
Aristóteles (talvez por aborrecimento) considerava que a forma só podia ser conhecida através de seu conteúdo e o conteúdo, através de sua forma. Ele postula um método indutivo pelo qual o conhecimento é adquirido através da coleção de todas as instâncias individuais. Para Aristóteles, a enumeração de todas as instâncias específicas dos atributos leva a conceitos mais elevados, mais pobres em conteúdo, porém mais amplos em alcance. É Aristóteles quem introduz o conceito de abstração como envolvendo uma distância crescente da experiência imediata. Uma relação dinâmica, ainda na forma de uma dualidade.
A tática de declarar que forma e conteúdo são a mesma coisa “… simplesmente deixa os termos sem significado e os abandona enquanto ferramentas. Assim que prestamos atenção à maneira como as palavras funcionam, tanto a Forma pura quanto a Unidade entre Forma e Conteúdo desaparecem na invisibilidade não da transcendência, mas do não-significado linguístico. Elas vão para onde vão os erros gramaticais. Elas vão para onde vão os veículos da metáfora”.
(Thomas McEvilley, On the Manner of Addressing Clouds)
Essa separação arraigada passou de “princípio primordial” a prática extrema e programática. Hoje em dia, por exemplo, a maior parte das atividades criativas parecem se estagnar em ambos os polos desse antagonismo. Consequentemente, temos de um lado uma forma desencarnada de conceitualismo sócio-político e, de outro, uma modalidade autorreferente de formalismo greenberguiano, ambas engajadas com o que pode ser visto com uma forma renovada de neoplatonismo.
Coisas se parecem com coisas, elas estão inseridas na transitoriedade do significado umas das outras: uma coisa se parece com uma coisa, que se parece com outra coisa, ou outra. Este eterno ricochetear de significado por meio do elementar prova que a representação é natural e que a natureza é representacional.