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Ética da ilusão

Escrito por Moacir dos Anjos

No livro Ficciones, Jorge Luis Borges narra os feitos literários de um certo Pierre Menard, escritor natural de Nîmes, cuja produção dataria do primeiro terço do século XX. Embora desprezado por seus contemporâneos, o autor teria realizado obra heroica e ímpar: escrever os capítulos nono e trigésimo oitavo – além de um fragmento do capítulo vinte e dois – da primeira parte de Dom Quixote, fazendo-os coincidir, “palavra por palavra e linha por linha”, com aqueles escritos por Miguel de Cervantes. Não haveria em tal façanha, contudo, charlatanismo ou loucura, mas a aplicação de método árduo para reconstruir, por deliberação própria, uma obra que havia sido feita, trezentos anos antes, de modo espontâneo. Somente a vida breve o teria impedido de levar a bom termo o seu ambicioso projeto de aproximar, a ponto de não se distinguir neles diferença alguma, original e reprodução.1 Esse conhecido conto de Jorge Luis Borges exprime, exemplarmente, o desejo que permeia parte relevante da própria obra do escritor argentino: percorrer e habitar, por seus escritos, a distância curta que aparta verdade e fi cção. É justo nesse espaço exíguo e denso que também se desenvolveu, ao longo de década e meia de atividade intensa, a obra visual de
Vik Muniz. Apoiado desde cedo em ideias tecidas com argúcia e engenho, o artista criou, nesse período, conjunto singular de trabalhos que expressam rara coerência de intento. Pouco afeito aos limites convencionais que separam processos construtivos, articulou saberes e meios diversos para formular uma poética do olhar diante de coincidências e desacertos que encontra entre a realidade e sua representação.

Realizados quase no início da trajetória do artista, há dois trabalhos que, juntos, anunciam a questão central com que Vik Muniz iria se ocupar nos anos seguintes. Em um deles – Two nails (1987) –, um papel fotográfico é preso à parede por um prego que, para tanto, o fura; impressa nesse mesmo papel, a imagem de um outro prego – idêntico ao primeiro – também o trespassa, embora dessa vez virtualmente apenas. De construção simples, nesse trabalho o artista inquire, sem apresentar respostas prontas, o que faz uma imagem ser distinta daquilo que representa. Já no trabalho The best of life – feito entre 1988 e 1990 –, Vik Muniz reproduz, em desenhos feitos com carvão e valendo-se somente de sua memória ativa, fotografias de traumas e acertos humanos inúmeras vezes vistas em jornais, revistas e livros: a menina vietnamita com o corpo queimado pelo napalm americano, o astronauta pisando na lua ou o beijo em Times Square que celebra o fim de um conflito. Fotografa em seguida esses desenhos e promove o confronto entre o registro impresso de sua memória e as lembranças que o observador possui das imagens que serviram de modelo ao artista. Qualifica, assim, a ambiguidade da relação entre a fotografia e o seu referente em termos do desacordo entre imagens que constrói e fixa em papel fotográfico (seus trabalhos) e a memória coletiva sobre o que essas imagens evocam ou copiam.

São dois os procedimentos básicos que, a partir de então, orientam o ofício de Vik Muniz. Utilizando materiais efêmeros ou frágeis e valendo-se de destreza inequívoca na construção de objetos e no desenho, recria imagens extraídas de um repertório visual consagrado pela história da arte ou informado pelo cotidiano: com calda de chocolate, refaz uma reprodução de A última ceia, de Leonardo da Vinci; com poeira colhida em salas e galerias do Whitney Museum, replica, a partir do registro de exposição do acervo do museu, uma escultura criada por Donald Judd; e, com açúcar, copia imagens fotográficas (feitas pelo próprio artista) de crianças que vivem junto a plantações de onde se extrai a matéria-prima do adoçante. Fotografa depois essas reconstruções perecíveis e as descarta por inteiro em seguida, preservando apenas o seu registro. Tal método usado para refazer e fixar as imagens escolhidas promove a aproximação entre temporalidades e atributos distintos. Enquanto a recriação material dos modelos eleitos se faz de modo lento (ou quase, ao menos), mobiliza a perícia manual e atrai toda a atenção do olhar para a sua feitura, seu registro fotográfico é instantâneo, não implica destreza alguma e acontece no momento exato em que o obturador da câmara veda, ao artista, a visão da imagem por ele construída. Por meio dessa operação complexa e ao mesmo tempo cândida, Vik Muniz
enfraquece a aderência forte que se esperaria existir entre as imagens fotografadas e aquelas que primeiro lhes serviram de matrizes, tornando o meio fotográfico mais opaco e forçando o alongamento do tempo necessário para que o observador defi na o que está sendo, de fato, representado ali.

Após o reconhecimento vago, mas quase imediato de imagens já vistas em algum outro lugar – confirmando, portanto, a longevidade assegurada a elas na memória comunal –, a atenção de quem se defronta com os trabalhos do artista se volta ao desvelamento dos processos que emprega na sua recriação, provocando um envolvimento prolongado e próximo do observador com as fotografias que registram os resultados de tais construções. Ao deparar-se com a fotografi a de uma pintura de Jean-Baptiste Corot refeita pelo delicado enovelamento de linhas de cerzir, o olhar não se reporta mais somente ao assunto nela descrito, mas, alternada e forçosamente, também ao meio inusitado pelo qual Vik Muniz a reapresenta. O próprio título do trabalho – 16.000 jardas (Le Songeur, a partir de Corot) – faz referência explícita à quantidade de linha usada nessa reconstrução cuidadosa de uma paisagem pintada um século e meio antes. Interesse similar é criado diante de fotografias de um monocromo de Yves Klein reconstruído pelo ajuntamento de papéis retirados de escalas pantone, de um prosaico balanço infantil reproduzido em arame ou de pinturas de Gustave Courbet refeitas com terra apenas.

Particularmente reveladoras do descolamento que o artista promove entre as imagens que cria e os seus referentes são, entretanto, suas fotografias de um trabalho de Andy Warhol refeito com pimenta-do-reino, curry, pimenta-malagueta e pimenta-decaiena, o políptico chamado Liz. É certo que o processo serigráfico de reprodução fotomecânica – técnica preferencial do artista norte-americano – já implicava o esvaziamento da presença vívida das imagens humanas que escolhia como modelos (fotografias de celebridades como Marilyn Monroe, Jacqueline Kennedy ou, no trabalho destacado aqui, Elizabeth Taylor), diluindo-as no granulado próprio da técnica de impressão usada e cobrindo-as de cores tão variadas quanto fortuitas. O material utilizado por Vik Muniz nas duplicações que faz desse trabalho – em que os grãos das pimentas mimetizam os pontos originalmente impressos, suas diversas cores evocam os tons que entintavam papéis e telas de Andy Warhol e são muitas as associações simbólicas que despertam – enfraquece ainda mais, contudo, a soldagem suposta entre a memória de uma imagem conhecida (o rosto da estrela de cinema) e a sua reprodução fotográfi ca, inserindo, entre elas, camada espessa de sentidos. Ademais, a imagem lembrada do trabalho de Andy Warhol (cores, texturas, tamanho) é aqui também posta em confronto com os registros de sua recriação executada com o emprego de especiarias, fazendo com que, além de Elizabeth Taylor, essa conhecida reprodução serigráfi ca seja referente das fotografias de Vik Muniz.

De modo similar, reconstruir, em perfeitas maquetes, trabalhos de land art feitos quase três décadas antes por Robert Smithson (Spiral Jetty) ou Walter de Maria (Lighting fi eld) somente para fotografá- las – criando imagens muito semelhantes às fotografi as em que esses célebres trabalhos hoje existem como objetos de arte – transforma o que originalmente eram registros de intervenções feitas no espaço aberto em referentes para as fotografi as da série apropriadamente intitulada Earthworks no Brooklyn, em uma alusão ao local onde o artista trabalha. Por meio dessa alteração sutil de sentidos, Vik Muniz dilata a distância perceptiva entre as imagens daquelas intervenções ambientais e a sua existência física nos lugares onde foram realizadas.

O desconforto e o fascínio em relação aos problemas conceituais que esse tipo de fi xação de imagem envolve – em que a representação de um trabalho efêmero ou de difícil acesso toma o seu lugar como artefato de arte – levou o artista a não se deter apenas em fotografar miniaturizações de trabalhos já conhecidos de land art. Passou a fazer maquetes de trabalhos supostamente construídos ao ar livre e também supostamente fotografados de cima ou de longe, mas que, ao contrário daqueles que havia previamente copiado, nunca haviam existido de fato, sendo em vez disso inventados. Ademais, no lugar das imagens sem referentes na vida comum – próprias da tradição de land art –, esses trabalhos reproduziam somente signos reconhecíveis de coisas banais, tais como um par de meias, uma colher ou um par de óculos pousado sobre uma superfície indistinta. Em paralelo a tais construções miniaturizadas, Vik Muniz deu ainda início, entretanto, a representações feitas em escala semelhante à dos trabalhos que lhe haviam servido antes de modelo, replicando, ele próprio, os procedimentos operosos empregados na sua construção. Usando os espaços amplos e os equipamentos de uma área de extração de minério, desenhou, no solo arenoso, gigantescas imagens icônicas de objetos comuns e de tamanho original modesto, tais como um envelope, uma chave ou uma tesoura. Feitas a partir de um helicóptero – pois é do alto que tais trabalhos se tornam legíveis como imagens –, suas fotografi as registram os desenhos simples cavados intencionalmente na terra e também sua inserção nas paisagens formadas, com o passar dos anos, pela própria atividade extrativa.

Nesses dois conjuntos de trabalhos – sejam os registros de maquetes que inventa, sejam as fotografi as de imagens cavadas no solo –, Vik Muniz não faz referência apenas aos experimentos contemporâneos de land art, mas igualmente às práticas antigas de desenhar na terra, como os desenhos Nazca no Peru ou os Celtas na Inglaterra. Em razão disso, o espaço simbólico que o artista instaura entre as imagens dos objetos banais que toma como modelos e o olhar interessado de quem vê as fotografias que cria é atravessado pelos signifi cados daqueles experimentos artísticos feitos décadas antes e, simultaneamente, de práticas antigas cuja classifi cação é ainda incerta. O lugar que foi já reservado ao transcendente ou ao sagrado é, contudo, ocupado nesses trabalhos – pertencentes à série Pictures of earthworks – por aquilo que lembra uso cotidiano ou ordinário. É relevante notar também que, ao olhar ligeiro e leigo, não há quase distinção processual possível entre uma fotografi a que registra um desenho feito com areia sobre uma mesa (por exemplo, de uma colher) e uma outra que registra um gigantesco desenho feito diretamente no solo (por exemplo, de uma chave). Aproximados por sua ilusória semelhança construtiva e pelo tamanho similar da impressão de seus registros fotográfi cos, esses trabalhos, exibidos lado a lado, confundem o olhar e põem em perspectiva a própria escala do observador diante das coisas que o cercam. Fazendo confusão deliberada entre os tamanhos das imagens que decide replicar, os processos usados para reconstruí-las e os registros fotográficos que desses processos resultam, Vik Muniz promove a ruptura da equivalência escalar do mundo e faz, desse expediente, parte importante da ilusão que se propõe a criar.

Apesar da atração que essas operações construtivas ou o emprego de materiais estranhos à arte despertam, não há, nesses procedimentos de representação, empenho do artista para atenuar o interesse sobre os temas contidos em cada uma das imagens apropriadas. Modifi cando o que usualmente se espera do meio fotográfico – visto, pelo senso comum, como denotativo somente –, Vik Muniz, em verdade, apenas induz o olhar a afastar-se, por um lapso de tempo, dos referentes que esse meio descreve, sugerindo, nas imagens refeitas, sentidos novos e uma retórica distinta. Ao associar o conteúdo das imagens que escolhe às propriedades formais e simbólicas dos processos e materiais com os quais as reproduz – efetuando o registro fotográfi co dessa tensa junção em seguida –, o que o artista faz é criar signifi cações até então não existentes. Em vez de dissolver a importância do assunto, a investigação cuidadosa das imagens reconstruídas – estimulada pelo encanto ou estranheza acrescidos a elas por seu modo novo de apresentação – permite enxergar outra vez, ainda que de maneira diversa de como eram conhecidas antes, cenas, figuras ou coisas tornadas invisíveis por sua excessiva familiaridade. A despeito, portanto, das alterações ou adições de sentidos que os mecanismos utilizados para reproduzir uma imagem provocam, o seu caráter icônico é preservado nas fotografi as de Vik Muniz.2 O que pode haver de enigmático no sorriso da Monalisa ou de banal em um binóculo é mantido na reconstrução dessas imagens com pasta de amendoim e geleia, em um caso, e com terra, gravetos e folhas, no outro. E mesmo que a natureza dos
materiais com que recria imagens as torne por vezes cômicas ou as “desclassifique”, o caráter com frequência transiente dessas substâncias termina por afi rmar, por oposição, a integridade dos referentes usados pelo artista.

É preciso bem qualificar, assim, que tipo de ilusionista é Vik Muniz. Se não escamoteia do observador os métodos de construção que usa – todos passíveis de serem mentalmente reconstituídos por quem vê com atenção suas fotografi as –, tampouco sonega ou disfarça a origem das imagens que reproduz. O olhar atento identifica as substâncias empregadas (seja ketchup, espaguete ou cinzas) e, em graus variados – a depender da cultura visual do observador –, também as imagens matrizes. Sem propor hierarquias novas, o artista apenas confunde os sentidos antigos das coisas com outros novos e busca exprimir, visualmente, a “pior ilusão possível”, aquela que, apesar de efetiva, situa-se no limite de seu desmanche.3 Promove, contra todas as expectativas que o significado do termo autoriza, uma ética da ilusão, na qual o que se esconde em um instante se mostra evidente em seguida.

Os efeitos concorrentes de desconforto e identifi cação percebidos, a um só tempo, diante das fotografi as de Vik Muniz – testemunhos da ambiguidade com que reapresenta, para todos, o repertório visual do mundo – dependem muito da articulação certeira entre os ícones de que se apropria e os meios usados para reproduzi-los. Não há regras fi xas, contudo, para promover esse encontro sinérgico entre mensagem e meio. Por vezes, são imagens com que o artista convive por razões diversas que indicam os materiais mais adequados à sua representação, como é o caso da série Crianças de açúcar, em que a substância usada informa algo que não estava explícito nas fotografi as singelas que lhe serviram de modelo. Em outras ocasiões, são características intrínsecas a materiais do cotidiano que os fazem aptos a representar imagens caras a Vik Muniz e que são, por isso, escolhidos em meio a outros tantos:4 como o algodão se presta a imitar nuvens, é usado para criar imagens “equivalentes” às conhecidas fotografi as feitas por Alfred Stieglitz; como a linha é fl exível e delgada o bastante para reproduzir intrincadas paisagens, é ela a matéria usada para refazer vistas pintadas por Claude Lorrain ou por Gerhard Richter; e como o arame serve bem para repetir, em três dimensões, imagens simples antes traçadas sobre uma superfície plana, é ele que torna possível a mudança de presença física de objetos tão diferentes como uma lâmpada, um cinzeiro ou uma gaiola.

Não é somente na preservação das imagens usadas ou na adequação entre os fatos nelas descritos e os aspectos formais das substâncias com que são refeitas que se funda, entretanto, o interesse dos trabalhos do artista. São, sobretudo, os ruídos simbólicos gerados pelo avizinhamento entre os referentes dos trabalhos (imediatos e distantes) e os meios empregados para a sua reconstrução – aliados à inesperada relação escalar com que são, com frequência, postos juntos e ampliados em papel fotográfico – que fazem, das fotografi as de Vik Muniz, plataforma privilegiada para a emergência daquilo que imagens e materiais, apartados, não podem enunciar. Entre os vários trabalhos em que essa tensão emerge, alguns se destacam por sua eloquência, como é o caso da série O depois, na qual fotografi as prosaicas de meninos e meninas de rua reproduzidas com a sujeira que sobra do carnaval põem em atrito fatos próximos, mas tratados pela sociedade que os gera como se fossem distantes. A desproporção de tamanho entre o lixo e as imagens das crianças na impressão fotográfica reforça ainda, fazendo uso de original sintaxe, os sentidos ambíguos que o trabalho possui. Refazer uma fotografia de Sigmund Freud com calda de chocolate estimula, por sua vez – quase como paródia ou cartum –, associações complexas entre desejo e comida fundadas na psicanálise e que são hoje objeto de consumo pretensamente culto. Da mesma forma, a reprodução, com massa de modelar, de imagens pornográfi cas colhidas na Internet – trabalhos que compõem a série Erotica – aproxima o lúdico do sensual, confunde as marcas dos dedos impressas na massa com as curvas dos corpos desnudos que reproduzem, e faz das cores vivas da matéria sintética um substituto para os tons variados de peles anônimas que se roçam. É evidente, aqui também, a discrepância entre o tamanho supostamente reduzido das reconstruções das imagens feitas com massa de modelar e as suas impressões fotográfi cas, muitas vezes maior. O que foi toque sutil de mãos se torna, nas ampliações feitas, representação tosca, mas crível, de largas pinceladas, tornando esses trabalhos elo que ata, no campo ótico, fotografi a e imagem pintada. Afastando, de suas fotografi as, o sentido “óbvio” das imagens de que se apropria – sentido que alcança, de modo desimpedido e claro, mesmo o observador desatento –, o artista cria passagens de entendimento para a emergência do sentido “obtuso” que elas embutem – sentido estranho a qualquer instância realista de representação e em estado de reformulação constante.5

É, portanto, por ser campo de significados latentes que se alternam e se expandem que a obra de Vik Muniz – embora represente pessoas e coisas do mundo – recusa adesão a dois dos principais regimes de representação visual que, desde o Renascimento, informam a arte do Ocidente: o perspectivismo idealista cartesiano, cujo primeiro intérprete teórico foi Batista Alberti, e a tradição holandesa de pintura descritiva e empírica, que tem em Jan Vermeer talvez o seu maior expoente.6 Mesmo quando se apropria de imagens fundadas na idealização geométrica do espaço (trabalhos feitos, por exemplo, por Giovanni Piranesi ou Albrecht Dürer), a natureza mundana dos materiais com que as reproduz se contrapõe à ilusão ótica que os originais proporcionavam a quem os via. Refeitas com linha ou com centenas de alfi netes de costura, as duplicações fotografadas de Vik Muniz desorientam o olhar e confundem a separação virtual entre a superfície e o fundo das cenas ali contidas. Subvertida pelo ato de prestidigitação do artista, a narrativa monocular e estática que as imagens originais traziam cede, simbolicamente, à maleabilidade própria dos materiais com que são reproduzidas, abrindo-se a embates diversos com os sentidos.

De maneira análoga, também o regime visual inaugurado pela pintura holandesa do século XVII é incapaz de servir de modelo para as representações fotográfi cas criadas por Vik Muniz. Ainda que algumas características do meio de fi xação de imagens que usa (a fotografi a) tenham sido antecipadas por essa tradição de pintura – tais como a ênfase em superfícies fragmentadas e os enquadramentos arbitrários de um mundo a ser primariamente apenas descrito –,7 a crença desses pintores (Jan Vermeer, Rembrandt, Jan Steen) na perfeita legibilidade das coisas representadas é incompatível com a ambiguidade cognitiva que os trabalhos de Vik Muniz estabelecem como típica da visualidade do mundo que habita. Observadas de longe, as fotografi as afirmam o desenho nítido de pessoas e objetos; vistas de perto, “quando o olho é tato”,8 reduzem o que está em suas superfícies descrito a somente comida, poeira ou outra substância qualquer, em uma aproximação corporal dos trabalhos.
Mais de acordo com essa natureza ambígua da obra do artista está, talvez, o regime visual barroco, oposto aos outros dois por assumir a opacidade da realidade que representa e a impossibilidade, portanto, de retratá-la de modo preciso. Tomando a ambivalência como valor do mundo, Vik Muniz não busca reduzir a experiência visual a uma dimensão apenas, tampouco agrupar a diversidade de leituras que uma imagem suporta – a apreensão de seu referente, da matéria em que este se apresenta, e de seus vários signifi cados – em uma impossível síntese. Fascinado pelas dobras, fi ssuras e frestas que maculam e informam a faculdade do olhar, o artista debruça-se sobre a desorientação da visão diante do que não pode apreender de pronto e sobre o caráter quase extático do reconhecimento dessa insuficiência. Aposta, por isso, no engajamento demorado do observador diante de seus trabalhos e na carnalidade da experiência visual contemporânea.

1 BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote.
In: ______. Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores, 1969.

2 COCCHIARALE, Fernando. Sobre a poética de Vik
Muniz: matéria, imagem e memória. In: Vik Muniz. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, 2001. [Catálogo].

3 MUNIZ, Vik; ASHLEY, Charles. Vik Muniz and
Charles Stainback: a dialogue. In: Vik Muniz. Seeing
is believing. Santa Fé: Arena Editions, 1998.

4 MUNIZ, Vik; ASHLEY, Charles. Vik Muniz and
Charles Stainback: a dialogue. In: Vik Muniz. Seeing
is believing. Santa Fé: Arena Editions, 1998.

5 BARTHES, Roland. O terceiro sentido. In: ______. O óbvio e
o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

6 JAY, Martin. Scopic regimes of modernity. In: FOSTER,
H. (Ed.). Vision and visuality. Dia Art Foundation. Discussions in
contemporary culture. Number 2. Seattle: Bay Press, 1988.

7 JAY, Martin. Scopic regimes of modernity. In: FOSTER,
H. (Ed.). Vision and visuality. Dia Art Foundation. Discussions in
contemporary culture. Number 2. Seattle: Bay Press, 1988.

8 MELO NETO, João Cabral de. Escritos com o corpo. In:
______. Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961.